sábado, 3 de janeiro de 2009

Sabor de infância


Na casa da prima, ao olhar aquele quadro na parede, Clara visualizou a sua infância. Lembrou das deliciosas viagens de trem para Minas Gerais. Ela gostava das paisagens ao longo da estrada de ferro: os pastos verdinhos, os bois no alto das colinas, o doce Rio Doce, com suas águas barrentas seguindo o caminho inverso ao do trem. Mas, o que Clarinha mais gostava era de olhar para baixo e ver o movimento da linha entrando e saindo de debaixo do trem. Ah! Aguardava ansiosa a chegada do túnel. No escurinho, sentia um ar de mistério, algo inexplicável, que logo se desfazia com os primeiros raios de luz, que novamente invadiam o vagão.
Ao desembarcar na estação da pequena cidade, toda brilhosa - pó de minério para ela era purpurina - Clarinha se sentia feliz porque ia rever a encantadora casa da tia, com suas janelinhas azuis, e cercada pelas frondosas mangueiras do quintal. Das janelas, Clarinha estendia os pequeninos braços e pegava as suculentas mangas; em outros momentos, a menina pulava a janela e ia se deitar sobre a espessa raiz do pé de manga espada, ela gostava de ficar espiando os pedacinhos de sol que atravassavam as folhas. Quando se cansava de brincar com os raios de sol, Clarinha escalava a mangueira e, lá do alto, jogava os caroços de manga no telhado da casa, que, vista de cima, parecia casinha de boneca.
Numa dessas viagens, a prima Sandra deu para Clarinha uma enorme boneca. Felicidade igual, a menina jamais experimentara, já sonhou ganhar uma boneca quase do seu tamanho, mas não esperava que um dia esse sonho se tornasse realidade, pois sabia que seus pais jamais poderiam lhe dar um presente caro assim. Mas a boneca dos sonhos veio de onde Clarinha não esperava. É verdade que era uma boneca velha, com a qual a prima, já mocinha, havia enjoado de brincar e, para não jogar fora, deu para a priminha, mas, para Clarinha, isso não tinha importância, era o melhor presente que já recebera na vida. Não desgrudava da boneca.
Na volta para casa, só alegria! Na estação, Clarinha via o trem vindo de longe, serpenteando pelo caminho de ferro. Entrou no vagão com o sonho no colo, apesar da dificuldade em carregar uma boneca tão grande. Acomodou-se na janela e veio tomando vento e pó de minério no rosto, vendo a paisagem e cantando. Colocou a boneca na janela do trem, segurando-a por uma das pernas. De repente, a tragédia! Clarinha entra em desespero. Chora, grita, berra! Não quer acreditar que seu sonho ficou na linha do trem. Na sua inocência de criança, a menina acredita que o pai possa falar com o maquinista, pedir para parar o trem, descer e trazer a sua boneca de volta. O pai, muito calmo, e, sentindo a dor da filha, insiste em dizer que nada pode fazer. A mãe, muito nervosa e envergonhada com o escândalo da filha, diz para a garota calar a boca e jogar fora a perna da boneca, e ainda aumenta mais a dor da criança dizendo que perdeu a boneca por culpa dela mesma, que se tivesse obedecido à ordem de guardar o brinquedo, nada disso teria acontecido... coisas de mãe!
Como Clara previa, jamais teve uma boneca igual àquela que teve por poucas horas. Nunca mais saboreou as mangas de Minas. A tia vendeu a casa e mudou-se para o Espírito Santo, seguindo o exemplo de todos os familiares. Usufruiu as praias por pouco tempo. Hoje, ela habita um gélido quarto de hospital, e as mangueiras que a cercam não dão suculentos frutos, no entanto, lhe dão vida, se é que podemos chamar isso de vida... Agora, as visitas que Clara faz à tia não têm sabor de manga, têm o sabor amargo de uma despedida irrevogável, mas teimosa. Mas, naquele dia, na volta do hospital, ao passar na casa da prima, Clara sentiu um gostinho de manga espada quando deteve-se por instantes diante de parte da sua infância pendurada na parede da sala.

8 comentários:

Paula Barros disse...

Quantas lembranças, com cores e gostos. Ficou um texto ótimo.

Me fez lembrar algumas passagens da minha vida.

abraços

Josely Bittencourt disse...

oxi, lembrei de um livrinho infantil q li quando devia ter uns 9 anos [acho] q chamava "A boneca sem perna", em seu conto é a perna sem boneca, rsrsr

infância, lembranças e situações sombrias resultariam tb em uma animação bem legal.


beijinho, flor!

Luiz Caio disse...

Oi Carla! Como vai?
Certos acontecimentos da infância, nos marcam muito profundamente. Clara, certamente, jamais se esquecerá desta triste passagem em sua vida. Na parede, a perna da bonéca... Permanece como uma promessa!

UM LINDO CONTO!

TENHA UM ÓTIMO FINAL DE SEMANA!
BEIJOS.

- Moisés Correia - disse...

“Reencarnação”

Foi em tempos… há muito tempo
Um tempo longínquo que já não sei…
Recordadas no momento de um pensamento
Pergaminhos da memória que furtei

http://pensamanzas.blogspot.com/

Uma boa semana com um abraço amigo…

Luiz Caio disse...

Oi flor!
Passei para deixarlhe um abraço, e desejarlhe uma ótima semana!

BEIJOS.

Dauri Batisti disse...

Um texto muito gostoso de ler. Concordo com a Jo: daria uma animação muito boa.

beijo.

Carla disse...

perfeito este teu texto...obrigada pela visita permitiu-me descobrir este teu magnífico espaço
beijos

Carla disse...

perfeito este teu texto...obrigada pela visita permitiu-me descobrir este teu magnífico espaço
beijos